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Agrotóxicos intoxicaram 26.000 brasileiros em dez anos

Levantamento feito pela agência Pública revela que 1.824 morreram por causa de venenos agrícolas




BRUNO FONSECA / AGÊNCIA PÚBLICA


Cerca de 40.000 pessoas foram atendidas no sistema de saúde brasileiro após serem expostas a agrotóxicos nos últimos dez anos, segundo um levantamento inédito feito pela Pública com base nos dados do Ministério da Saúde. Desse total, 26.000 pacientes tiveram intoxicação confirmada por médicos, com sinais clínicos como náuseas, diarreias ou problemas respiratórios, ou mesmo alterações bioquímicas no sangue e urina detectadas por exames laboratoriais. A média equivale a sete pessoas intoxicadas por dia. Homens são a maioria dos afetados por agrotóxicos agrícolas e a maioria dos pacientes tem ensino fundamental incompleto.


Segundo os registros, na maior parte dos casos o paciente foi curado. Mas há centenas de casos de mortes: 1.824 pessoas morreram devido à intoxicação e outras 718 pessoas permaneceram com sequelas, como insuficiência respiratória, problemas nos rins ou lesões no fígado.

O levantamento foi feito com base em registros de 2007 a 2017 no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde. Os dados revelam também uma grande quantidade de tentativas de suicídio por agrotóxicos e milhares de envenenamentos no ambiente de trabalho.




Agrotóxicos são amplamente usados em suicídios


As circunstâncias nas quais ocorrem as intoxicações são variadas, mas os dados revelam duas situações principais: suicídios e acidentes.

Nos últimos dez anos, mais de 12 mil pessoas tentaram suicídio com agrotóxicos em todo o Brasil. Dessas tentativas, 1.582 resultaram em mortes. Outras 231 tiveram cura, mas com sequelas. A maioria absoluta das tentativas de suicídio ocorreu no Paraná, com 2.140 registros. Em seguida vêm São Paulo e Pernambuco.

Agrotóxicos agrícolas são a terceira substância mais comum em tentativas de suicídio no Brasil, atrás de medicamentos e produtos para matar ratos. A quantidade de pessoas que tentaram suicídio no Brasil com agrotóxicos é quase oito vezes maior do que a dos que tentaram por abuso de drogas ilícitas ou lícitas, como álcool e anfetaminas.

A letalidade das tentativas de suicídio por agroquímicos é preocupante: é a maior entre todos os agentes utilizados nesses casos. Mais de 12% das tentativas de suicídio com intoxicação confirmada resultaram em morte, taxa dez vezes maior que a de pessoas que tentaram o suicídio com medicamentos.


Trabalhadores com baixa escolaridade são os que mais se acidentam


Fora as tentativas de suicídio, os acidentes são a segunda principal causa de intoxicação por agrotóxico no Brasil. Nos últimos dez anos, foram mais de 7 mil ocorrências. A maioria delas (62%) aconteceu em ambiente de trabalho. O Paraná é o estado com o maior número absoluto: foram 1.082 casos confirmados nos últimos dez anos.



A maioria dos casos de envenenamentos acidentais em ambiente de trabalho levou à cura sem sequela. Contudo, há 65 casos de sequelas após o tratamento e 32 mortes por intoxicação.


Mais da metade dos acidentes de trabalho com agrotóxicos envolve pessoas de 20 a 39 anos. Para cada mulher envenenada, há quase seis homens. E o grau de escolaridade mais comum é da 5ª à 8ª série do Ensino fundamental incompletas.


Para a professora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP) Larissa Bombardi, trabalhadores rurais são especialmente vulneráveis às intoxicações não apenas porque lidam diretamente com os agrotóxicos, mas também porque as intoxicações crônicas – que ocorrem após anos de exposição às substâncias – dificilmente são percebidas pelo sistema de saúde. “Quem são os mais intoxicados são os trabalhadores rurais e os camponeses, que estão manuseando esses produtos”, explica.


“O que mais vai aparecer são as intoxicações agudas, o sujeito passou mal e procurou o serviço de saúde, ou seja, os efeitos mais visíveis. Já as crônicas aparecem com muito menos importância nos dados. Por exemplo, o câncer e a malformação fetal podem ser multifatoriais. Precisaria de um cuidado muito maior do sistema de saúde para identificar esses casos, embora a gente saiba que existem”, avalia.


Larissa, que é autora do Atlas do uso de agrotóxicos no Brasil, indica que, embora haja dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde e pelo Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ainda faltam informações necessárias para aprofundar as pesquisas sobre intoxicações. “Estamos começando a desenvolver uma metodologia que avalie a conexão entre malformação fetal e câncer com a exposição a agrotóxicos, mas falta um mundo de pesquisa. A gente não tem informação detalhada de consumo de agrotóxicos por município, o montante utilizado em cada cidade, sobre pulverização aérea em todos os estados, ou seja, faltam dados oficiais”, avalia.


Paraná é recordista em envenenamentos


O estado brasileiro com a maior quantidade absoluta de exposições e intoxicações por agrotóxicos nos últimos dez anos é o Paraná, com 4.648 registros.

O estado é o segundo do Brasil com maior área plantada do país e também o segundo com a maior quantidade de estabelecimentos que utilizam agrotóxicos, segundo dados do Censo Agro 2017, do IBGE. Entre as principais produções agrícolas no estado estão cevada, feijão, milho, trigo e soja. Após o Paraná, São Paulo e Minas Gerais são os estados com maior quantidade absoluta de estabelecimentos que utilizam venenos agrícolas.



Nos últimos dez anos, o Paraná se manteve como um dos estados com maiores taxas de intoxicação por habitante. Contudo, desde 2011, os registros de intoxicação subiram no Espírito Santo, que é hoje a unidade da Federação com maior quantidade de intoxicações em relação à população.



O Paraná é o estado do deputado Luiz Nishimori (PR), relator do Projeto de Lei (PL) 6.299, de 2002, que altera a legislação sobre os agrotóxicos, transferindo o poder regulatório da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – vinculada ao Ministério da Saúde – para o Ministério da Agricultura, entre outras medidas. A Pública questionou o deputado se a proposta, caso aprovada, não poderia aumentar os casos de intoxicação no seu próprio estado, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.

O PL 6.299 é duramente criticado pela própria Anvisa, que afirma que as mudanças regulatórias trarão riscos à saúde da população. A Comissão Científica em Vigilância Sanitária (CCVISA) mostra que o projeto “vai na contramão da tendência internacional de consumo e comércio, representando um risco às exportações agrícolas brasileiras, podendo inclusive afetar a balança comercial do país”.

Por outro lado, a Sociedade Brasileira Rural (SBR), entidade que representa produtores rurais, defende que o projeto não irá aumentar a quantidade de intoxicações, pois elas ocorrem “pela aplicação equivocada dos defensivos, sejam eles químicos ou orgânicos, da mesma forma que ocorre com os medicamentos”, afirma o diretor João Adrien. “A lei atual funciona como uma barreira que protege as multinacionais que já estão no mercado, inibindo a entrada de novas empresas. Mas as startups com novas tecnologias, novos produtos, que surgirão com uma lei menos discricionária, menos burocrática e mais eficiente, poderão ter menor toxicidade”, argumenta.

Pressão constante sobre a Anvisa

A Pública questionou o Ministério da Agricultura sobre as intoxicações e a pasta respondeu em uma nota que “um produto só é liberado se considerado que, se utilizado conforme as recomendações de uso, não coloque em risco a saúde humana e o meio ambiente”. A assessoria do Ministério da Agricultura ainda acrescentou que “o número de intoxicações com medicamentos é muitas vezes superior ao dos pesticidas” e que medidas para evitar o aumento das intoxicações são “competência das autoridades de saúde humana”, completou. O atual ministro, Blairo Maggi (PP-MT), é o autor do PL 6.299.

O projeto de lei foi apresentado dois meses depois de o Decreto 4.074 ter estabelecido a competência da Anvisa para avaliar e reavaliar os registros de agrotóxicos conforme o grau de toxidade. Segundo Luiz Cláudio Meirelles, que foi gerente-geral de toxicologia da Anvisa de 1999 a 2012, sempre houve pressão contrária à ação dos ministérios da Saúde e do Meio Ambiente na regulamentação dos agrotóxicos. “Durante a gestão tivemos muitas brigas com empresas de agrotóxicos e parte do agronegócio por conta dessas mudanças na área regulatória, várias tentativas de tirar a competência [da Anvisa]. O projeto de lei é de 2002, está conseguindo avançar agora por conta da conjuntura política atual, mas a gente passou esses anos todos resistindo para que a competência nas áreas de saúde e meio ambiente não fossem retiradas. A gente não queria impedir que a produção agrícola exista, mas que incorpore novas tecnologias e que proteja a população”, critica.

Meirelles esteve na Anvisa também durante a implementação da Rede Nacional de Centros de Informação e Assistência Toxicológica (Renaciat), sistema que fornece informações, diagnostica e trata envenenamentos por agrotóxicos e outras substâncias em todo o país. Segundo ele, os números reais de intoxicação são muito maiores que os apontados pelo sistema de notificações – a estimativa é que, para cada caso reportado, 50 não sejam informados.

Assim, nos últimos dez anos, o número real de pessoas intoxicadas no Brasil poderia chegar a 1,3 milhão, isto é, mais de 300 pessoas intoxicadas por dia.

“Lidamos com uma informação muito aquém daquela que deveria ser produzida até para orientar as políticas públicas nessa área”, reconhece o especialista. No início de julho, contudo, a Anvisa publicou orientação de serviço 49/2018, que permite o processo de registro de agrotóxicos por “analogia”, isto é, quando já forem aprovados no mercado dos Estados Unidos ou na Europa, facilitando mais o uso de pesticidas. A Pública procurou o órgão para comentar a repercussão da publicação da portaria, mas não obteve retorno.

Para a médica do Centro de Informação e Assistência Toxicológica (Ciatox) de Brasília, Andrea Amoras Magalhães, além da subnotificação pela dificuldade de muitas pessoas acessarem o sistema de saúde, é preciso treinar melhor os profissionais para identificar e tratar exposições a agrotóxicos. “A gente só faz diagnóstico daquilo que a gente conhece. A exposição aguda é muito mais fácil de identificar. Falta ao sistema de saúde estar mais preparado para fazer diagnóstico da intoxicação crônica [que ocorre após várias exposições de menor dosagem]. Temos uma deficiência do ensino de toxicologia nas faculdades de medicina – que eu posso falar com mais proximidade –, mas, de uma maneira geral, dos diversos profissionais de saúde”, avalia.


Relatório aponta intoxicação em crianças na zona rural e cobra providências


Em maio de 2013, cerca de 90 pessoas, a maioria delas crianças, foram internadas após um avião pulverizar agrotóxico em uma plantação próxima a uma escola rural em Goiás. A situação foi documentada no relatório da ONG Human Rights Watch, divulgado em julho deste ano, que coletou relatos de intoxicação em comunidades indígenas, quilombolas e rurais em sete estados do país.

“É preciso delimitar uma zona de segurança para pulverização terrestre – em torno de locais como escolas, prédios ou áreas habitadas – porque até o momento não existe uma norma nacional. Para pulverização aérea existe, mas ela não é respeitada. Deveria ocorrer a suspensão da pulverização aérea enquanto as autoridades conduzam estudos sobre os impactos ambientais e à saúde”, explica um dos autores do estudo e consultor da Human Rights Watch, João Guilherme Bieber.

Segundo o pesquisador, a intoxicação de crianças que estudam ou vivem em áreas pulverizadas é ainda mais grave, pois os danos à saúde são mais severos. Segundo os dados do DataSUS, nos últimos dez anos, 1.484 crianças de até 9 anos foram intoxicadas por agrotóxicos no país.


Após a publicação do relatório, o secretário de Defesa Agropecuária, Luís Eduardo Rangel, se comprometeu a formalizar as distâncias de aplicação terrestre de agrotóxicos para evitar contaminação de pessoas. Procurado pela Pública, o Ministério da Agricultura respondeu que a competência para normatização e controle de uso de agrotóxicos é dos órgãos estaduais e do Distrito Federal e que uma proposta de instrução normativa está sendo elaborada para ser discutida no Fórum Nacional dos Executores de Sanidade Agropecuária (Fonesa).




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